Nick Hornby, "O tempo todo do mundo"
Nick Hornby, "O tempo todo do mundo"
(Texto publicado originalmente no jornal 'A Folha de São Paulo' do dia 21 de agosto de 2005)
(Texto publicado originalmente no jornal 'A Folha de São Paulo' do dia 21 de agosto de 2005)
O PRÊMIO PARA OS VENCEDORES DO CONCURSO BRITÂNICO "GRUPO DE LEITURA DO ANO" ERA UM FINAL DE SEMANA EM EDIMBURGO. MAS EIS QUE SURGE UM PROBLEMA. OS INTEGRANTES DO GRUPO DE LEITURA VENCEDOR ESTÃO PRESOS. O QUE FAZER? OFERECER A ELES A OPORTUNIDADE DE DISCUTIR UM ROMANCE COM SEU AUTOR. E NICK HORNBY ENTRA EM CENA.NICK HORNBY
O primeiro integrante do grupo de leitura High Down a chegar à biblioteca da penitenciária é Francis, um cinqüentão com certo sotaque italiano. Ele tem dois livros nas mãos; um deles é o meu romance "A Long Way Down" [Ladeira Abaixo], objeto de discussão do encontro de hoje, o outro é o clássico "romance de formação" para garotas adolescentes "I Capture the Castle" [Minha Conquista do Castelo], de Dodie Smith.
"A senhora tinha razão, é um romance adorável", diz Francis ao devolver o livro de Smith para Kay Hadwick, a bibliotecária e fundadora do grupo de leitura da penitenciária. "Adorável", repete ele com evidente satisfação. E tudo nessa fala, do livro escolhido às palavras empregadas, soa a um só tempo corriqueiro e irreal. Tenho a sensação de estar assistindo a uma das velhas comédias dos estúdios Ealing, com Francis no papel do inglês endinheirado e excêntrico que normalmente cabia a Alastair Sim.
O grupo de leitura da penitenciária de High Down existe há quatro anos. Durante esse período, seus membros leram obras de escritores tão díspares quanto Michel Houllebecq e Razor Smith, Adam Thirlwell e Erwin James, Patrick Suskind e Alice Sebold, e embora o máximo de delinqüência que alguns desses nomes evoque seja o envolvimento de casais de bacanas em patifarias de classe média -como roubar a babá dos outros-, o fato é que High Down é uma prisão classe B (os presidiários incluídos nessa categoria são definidos como aqueles para os quais a fuga deve ser "dificultada ao máximo"; enunciado que parece encorajar os presos das classes C e D a mostrar sua engenhosidade) e possui uma quantidade de portas de ferro, corredores sombrios e muros intransponíveis que satisfaria até a linhas-duras como Michael Howard [líder do partido conservador britânico] e Ann Widdecombe [deputada conservadora e ex-secretária do sistema carcerário britânico].
A formação de um grupo de leitura no interior de uma prisão serve como teste definitivo para a crença de que os livros dão mais valor e significado à vida: em que outro lugar se poderia fazer uso mais exaustivo de experiências que acrescentam valor à vida? Estou certo de que há excelentes grupos de leitura devorando um livro atrás do outro em todos os cantos do Reino Unido, mas é improvável que se possa encontrar gente tão merecedora do Prêmio Penguin/Orange de Grupos de Leitura quanto os dez homens que se reúnem mensalmente na biblioteca da penitenciária de High Down.
Este é o quinto ano do prêmio, e todos os outros grupos vencedores foram agraciados com um final de semana em Edimburgo. Desta vez, por razões óbvias, era preciso encontrar uma alternativa. Kay Hadwick admite que passou horas a fio quebrando a cabeça para descobrir uma maneira de conceder a dez criminosos um final de semana longe da cadeia -a bibliotecária também diz que está aberta a ofertas polpudas para transformar o caso em roteiro de comédia romântica para a Working Title Films [produtora de filmes como "Quatro Casamentos e um Funeral", "Notting Hill" e "O Diário de Bridget Jones"].
E a opção -anticlimática em todos os sentidos- foi oferecer-lhes a oportunidade de discutir o romance "A Long Way Down" com o sujeito que o escreveu. "Que tal essa?", sugeriu um dos presos quando os organizadores solicitaram uma frase que expressasse sua satisfação com o prêmio: "Trocamos dois dias de sexo e drogas em Edimburgo por uma conversa sobre suicídio com Nick Hornby".
Suspeito de que a maioria dos escritores nutra sentimentos no mínimo ambíguos quanto a escutar o que outras pessoas têm a dizer sobre seus livros; no caso, eu não me espantaria se tivesse sido recebido com uma saraivada de biscoitos de chocolate -se bem que, para os detentos, os biscoitos de chocolate não parecem ser atrativo menor que a oportunidade de discutir um livro de Michel Houllebecq.
Aos poucos vão chegando os demais integrantes do grupo. Jamie, um dos mais jovens, conta que está lendo Dickens e os clássicos, aos quais acha que devia ter se dedicado na escola (sem perceber, disseminamos a idéia errônea de que um adulto só lê os clássicos se tiver aprontado quando era jovem). Robin tem 40 e poucos anos, usa rabo-de-cavalo e diz aguardar ansiosamente a discussão, já programada, de "Fear and Loathing in Las Vegas" [Medo e Asco em Las Vegas], de Hunter S. Thompson, obra com a qual demonstra ter profunda intimidade -e não perde tempo em disparar sua comprida e intricada teoria conspiratória sobre o suicídio de Thompson.
Todos eles gostaram do livro de Erwin James ["A Life Inside - A Prisoner's Notebook" (Uma Vida por Dentro - O Caderno de um Prisioneiro)] e confirmam a fidelidade dos relatos que James, condenado em 1980 à prisão perpétua, apresenta sobre a vida na prisão. Mas a lembrança da leitura de "O Marinheiro que Perdeu as Graças do Mar" (Rocco), de Yukio Mishima, desperta olhares unanimemente enfadados.
Educação.
"Os dados desmentem a ideia de que os presos têm nível educacional inferior ao de indivíduos com características demográficas semelhantes na população como um todo", afirma um relatório elaborado em 1998 pelo Grupo de Planejamento de Serviços Carcerários do governo britânico. "Os percentuais de indivíduos da população carcerária que apresentam compreensão de leitura satisfatória são iguais ou superiores aos registrados no conjunto da população." É isso aí. Só posso falar de um número muito pequeno de presos da penitenciária de High Down, mas, se todos os homens britânicos tivessem tanta paixão por livros, diversidade de gostos e disposição para encarar novas experiências de leitura como Robin, Jamie e Francis, as editoras britânicas estariam livres de um de seus maiores problemas: a indiferença dos homens para com seus produtos. Talvez o restante de nós devesse passar algum tempo atrás das grades -o contato com esses presos deixa absolutamente claro que ler é bem mais do que um passatempo.
Começamos a falar sobre o meu livro. Nenhum dos membros do grupo confessa tê-lo detestado -fenômeno que deve ser apenas uma amostra da boa educação deles, mas no qual eu, como seria de esperar, vejo a confirmação de minha genialidade. Toda vez que uma personagem ou cena é relacionada com suas próprias experiências, tenho vontade de interromper e fazer perguntas sobre o tipo de vida que eles levavam, os crimes que cometeram, mas receio avançar o sinal e acabo me limitando -do que posteriormente viria a me arrepender- a falar sobre livros e literatura.
"O personagem Jess lembra muito um aluno que eu tive", comenta Matthew, o único negro do grupo, e não consigo deixar de me indagar como ele teria feito para sair de uma sala de aula e vir para cá. A referência de Ben à sua carreira de produtor musical também é extremamente intrigante, embora o caminho do mundo da música à prisão seja menos tortuoso.
"A Long Way Down" conta a história de quatro pessoas que se conhecem quando estão prestes a se suicidar; e as penitenciárias inglesas têm a mais alta taxa de suicídios na Europa. Um dos membros do grupo trabalha dentro da prisão para os Samaritanos [congênere londrino do CVV -Centro de Valorização da Vida], e aparentemente seus serviços são muito requisitados. Matthew faz uma breve divagação sobre coragem e suicídio: o que seria mais corajoso, continuar vivo e seguir em frente ou aceitar que a vida não vale a pena? Percebo que, para eles, o tema não tem nada de abstrato e começo a me dar conta de que, sob vários aspectos, o livro encontrou aqui seus leitores ideais.
Por outro lado, no tocante à questão da punição, suas opiniões são bem mais curiosas do que as de outras pessoas que também leram o livro. Minha intenção ao criar a personagem Maureen era, em certa medida, fazer dela a alma do romance: Maureen é uma mulher delicada, nervosa, e seu papel é mais de observadora do que de participante. Ela quer se matar porque passou grande parte da vida cuidando de um filho com graves deficiências mentais e, agora que o filho chegou à vida adulta, acha que não suporta mais isso.
"Minha vontade era que os outros três dissessem umas boas para essa fulana", comenta Ben. Certo. Quer dizer que, ao contrário do que eu pretendia, Maureen não é uma personagem de quem todos se compadecem facilmente.
Eu não espero despertar a simpatia de ninguém por Martin Sharp, um apresentador de TV vaidoso que vai em cana por dormir com uma garota de 15 anos. Mas Jamie deixa claro que se sentiu logrado com o final da história, quando Martin parece dar os primeiros passos rumo a uma reparação. Jamie queria que Martin -um homem que o faz lembrar "de tudo o que eu mais odeio nesse país" (e nesse ponto ele cita duas celebridades da TV britânica particularmente detestáveis, as quais me nego a nomear aqui)- continuasse o mesmo e se suicidasse no final.
Que importância tem o fato de que Martin talvez esteja começando a entender por que tantas pessoas o abominam e, assim, possa fazer de si mesmo uma pessoa menos abominável? Jamie está pouco se lixando para isso. A seus olhos, as tentativas que Martin faz para se corrigir são decepcionantes, pois frustram o fim que ele desejava para esse personagem. John, o preso que trabalha para os Samaritanos, expressa uma variante do mesmo sentimento ao dizer que "metade dos que se matam na prisão só fazem isso para fugir de suas penas".
A opinião de que as pessoas que se suicidam pretendem "fugir" de alguma coisa é muito discutível, mas o que fica claro nos comentários dos presos é que a pessoa precisa jogar com as cartas que tem na mão. Qualquer outra coisa é trapaça.
Volta para casa.
Falamos de gente famosa, dos padres, da juventude. Comemos nosso bolo de chocolate (e torço para que a substituição dos biscoitos pelo bolo tenha alguma coisa a ver com a minha visita, o que me livraria de ser o único prêmio do dia). Vou para casa, eles não. Em muitos aspectos, os homens que fazem parte do grupo de leitura da penitenciária de High Down se parecem com os integrantes de quaisquer outros grupos de leitura, apenas têm dentes mais cariados: são fanáticos por livros, e suas reuniões mensais os estimulam a ler coisas que de outra forma talvez não despertassem seu interesse.
Contudo este é um lugar em que as conversas sobre os mundos que se abrem durante a leitura de um livro são extremamente carregadas de significado e sentimento. Para nós, que estamos do lado de fora, é difícil avaliar a sensação de liberdade proporcionada pela iniciativa e pelos esforços de Kay Hadwick. Será que todas as pessoas que fazem parte de grupos de leitura são tão agradáveis e interessantes assim?
Não sei por quais crimes Jamie, Francis, Robin, Ben e os outros foram condenados, e não faço idéia de como eles eram antes de terem sido presos, mas posso dizer que, nos momentos em que passamos juntos, eles me pareceram ser pessoas divertidas, inteligentes, articuladas e atenciosas; o que só me faz lastimar ainda mais a história de Edimburgo. Mil desculpas, pessoal. Mas o bolo até que estava bom, não é?
Nick Hornby é escritor britânico. Autor de "Febre de Bola", "Alta Fidelidade", "Como Ser Legal", "31 Canções" (todos pela ed. Rocco), entre outros.
Este texto foi publicado originalmente no "Guardian".
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