Música + Livros; 'Vida : A Autobiografia', por Keith Richards


Música + Livros; 'Vida : A Autobiografia', por Keith Richards (Download + Leitura Online) 

Boas histórias, quando bem contadas, podem ser desfiadas várias vezes. Vida, o calhamaço de 600 páginas em que Keith Richards relata sua trajetória, tem esse mérito. Em tom confessional – por vezes bem-humorado, noutras sarcástico e em alguns momentos tristonho e nostálgico –, o guitarrista, vocalista, compositor e cofundador dos Rolling Stones traz a público sua própria versão para casos que são conhecidos de quem acompanha a superbanda de rock. 

Os primeiros anos dos Stones, o envolvimento com as drogas, talvez a parte mais folclórica de sua vida, os escândalos de todos os níveis, principalmente os sexuais, as prisões, as gravações de discos antológicos. Tudo isso, de certa maneira, já foi escrito e relatado por jornalistas entre os vários livros já publicados sobre o grupo. Mas, Vida apresenta o que nenhum outro conseguiu: mesmo tendo sido escrito em parceria com um jornalista que acompanha os Stones há mais de 30 anos (James Fox, a partir de incontáveis horas de entrevista com Richards, seus amigos e familiares), dá voz a seu protagonista. É o tom de Richards, aqui um grande contador de histórias, que interessa. E ainda sua percepção da vida e opinião sobre tudo o que lhe ocorreu. Por vezes, Vida parece uma longa conversa em que ele busca contar a sua verdade. Doa a quem doer. 

Foram cinco anos até que o livro ficasse pronto. O que se conta é que a prestigiosa editora norte-americana Little, Brown and Company pagou US$ 7,3 milhões de adiantamento ao receber somente as 10 primeiras páginas. Por um lado, Vida segue o formato das biografias tradicionais. Começa com um relato impactante – a risível prisão de Richards em 1975, no Arkansas, logicamente por causa de drogas – para depois desenrolar em ordem cronológica, da infância até os dias atuais. Mas a memória não funciona como um relógio e, em meio a uma história, Richards pode voltar no tempo ou andar à frente dele para contar um outro ocorrido com um dos personagens do primeiro relato. Para os detratores que afirmaram que ele não devia se lembrar de muita coisa, decorrência do período mais junkie da vida, ele dá um recado, de próprio punho, na orelha do livro: “Acredite se quiser, eu não me esqueci de nada.” 



Desde que Vida foi lançado nos EUA, no fim de outubro, só se fala da maneira nada lisonjeira como Richards se refere a Mick Jagger no livro. Os Rolling Stones chegam ao fim deste ano somando 48 anos desde sua primeira formação. Richards completa 67 anos no próximo dia 18. Se pensarmos que ele conheceu Jagger ainda na infância, é praticamente uma vida inteira a seu lado. Mesmo que o vocalista esteja presente em toda a sua trajetória, é na última parte do livro que a figura de Jagger se faz mais marcante. 

O lado mais fraterno dos momentos iniciais da banda vai esmorecendo até que na década de 1980, já livre do domínio da heroína, Richards toma consciência do que o antigo parceiro havia se tornado. Dali em diante, o que ele destila no livro é muita mágoa. Admite conviver bem hoje em dia com Jagger, mas depois de passar por várias crises. “Nos anos 60, Mick era incrivelmente carismático e engraçado.” Vinte anos mais tarde: “Em algum momento ele se tornou artificial.” Nos dias atuais: “Talvez Mick e eu não sejamos amigos – nosso relacionamento está muito desgastado para isso –, mas somos os irmãos mais chegados.” 

Ao lado de palavras assim, Richards destila ironia. Afirma que Jagger não é bem dotado; que no auge da antipatia por ele, chamava-o de Brenda pelas costas (com toda a banda incluída); que todas as mulheres do vocalista foram chorar em seu ombro; que suas ideias para músicas eram mero pastiche; e que a grande vingança foi ver sua carreira solo afundar rapidamente: “Era como Mein kampf (a biografia de Hitler). Todo mundo tinha uma cópia, mas ninguém escutava”, foi o que disse sobre She’s the boss (1985), primeiro solo de Jagger. 

Mulher roubada 

Anita Pallenberg, a mãe de seus três primeiros filhos (Marlon, Angela e Tara, este morto com poucos meses em circunstâncias não esclarecidas) é outro personagem de destaque. A história está nos anais do rock. Richards a “roubou” de Brian Jones, o outro guitarrista dos Stones. Roubar é modo de falar, pois estamos no auge da contracultura da década de 1960. A antiga musa foi transformando numa junkie ainda mais pesada do que Richards e o fim, em 1978, coincidiu com o momento que ele deixou a heroína (que ele chama veneno). Admite que se não fossem as drogas, poderia estar com ela até hoje – a obra é dedicada à atual mulher, Patti Hansen, com que está casado há quase 30 anos. 

A controversa morte de Jones, já retratada em livros e filmes, é apresentada por Richards de forma superficial. De acordo com ele, o guitarrista já estava afundado na loucura das drogas quando morreu e havia se transformado num ególatra chato. Ninguém na banda o suportava. Filho único, viveu uma relação confusa com os pais. Assim que saiu de casa, no fim da adolescência, a mãe, Doris, se separou do marido, Bert. Richards afirma ter se sentido dividido e acabou não vendo o pai por duas décadas. No fim da vida de Bert havia se unido a ele novamente. E, claro, nunca cheirou as cinzas do pai com uma carreira de cocaína. São bonitas as palavras dedicadas a ambos, sempre no modo Keith Richards de ser. 

Assuntos comezinhos dão leveza à narrativa. Quem além de Keith Richards poderia passar a receita de seu prato preferido, bangers and mash (grosso modo, linguiça e batata) e ensinar a prepará-lo, em sua autobiografia? Reserva várias páginas para descrever animais de estimação. Porém, fala com paixão mesmo é sobre música. Descreve métodos de gravação, formas de tocar guitarra, estilos de composição, sensações de tocar: “Levitação é provavelmente a analogia mais próxima do que eu sinto – seja em Jumpin’ Jack, Satisfaction ou All down the line – quando percebo que apanhei o ritmo certo e a banda está me seguindo. É o mesmo que decolar num Learjet… Só vou me aposentar quando bater as botas… Não é só pelo dinheiro ou por você. Faço isso por mim.” 

Metralhadora giratória Anita Pallenberg

“‘Inescrupulosa’ não seria uma má palavra para descrevê-la. Não me importo de jogar isso na cara dela agora, e ela sabe disso… Hoje em dia, Anita e eu podemos nos sentar no Natal com nossos netos e trocar um sorriso perplexo: ‘Oi, sua vaca velha e idiota, como estão as coisas?” 



  • Dez mais

  • “No começo de 1973, o New Musical Express preparou uma lista dos 10 astros do rock and roll que estavam mais perto da morte e me colocou em primeiro lugar…Fui o primeiro daquela lista durante 10 anos! Ela costumava me provocar gargalhadas… Fiquei desapontado de verdade quando comecei a cair na lista.” 



  • Ombro amigo

  • “Mick nunca quer que eu converse com suas mulheres. Elas acabam vindo chorar no meu ombro quando descobrem que ele aprontou outra vez… Já choraram no meu ombro Jerry Hall, Bianca, Marianne, Chrissie Shrimpton… E eu assumindo o mais improvável papel de conselheiro, o ‘tio Keith’.” 



  • John Lennon

  • “Fui ao banheiro e lá estava ele, afagando o piso, olhando a cerâmica. Vinho tinto demais e um pouco de heroína. Bocejo em tecnicolor. ‘Não me tire daqui, esta cerâmica é muito bonita’…Não sei se John alguma vez saiu de minha casa sem ser na horizontal.” 



  • Jean-Luc Godard

  • “Estou contente por ele ter feito o filme, mas Godard! Não acreditava, ele parecia um bancário francês… Não tinha nenhum plano coerente, a não ser sair da França e marcar uns pontos na cena de Londres.” 



  • Fuga

  • “Posso encarar as pessoas com mais facilidade se estiver sob efeito das drogas, mas também poderia fazer isso com a bebida…Também sentia que fazia aquilo para não ser um popstar. Havia alguma coisa da qual eu realmente não gostava com relação ao que eu estava fazendo, o blá-blá-blá… Mick escolheu a bajulação, que é muito parecida com as drogas – um distanciamento da realidade. Eu escolhi as drogas.”

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