Discoteca Básica; 'Nova Aeon', Raul Seixas (1975)


Discoteca Básica; 'Nova Aeon', Raul Seixas (1975) 

No verão de 89, Raul Seixas e eu estávamos em minha casa preparando material para o disco "A Panela do Diabo", quando ele falou: "Marceleza, vamos dar um tempo nesta paranoia de compor e tomar uma cervejinha."



Fizemos uma pausa, quando eu coloquei para tocar o seu álbum "Novo Aeon" e disparei: "De todos os discos que você fez, este é o meu favorito." Para minha surpresa, ele rebateu: "O meu também!"


Ë medida que as músicas rolavam, ele ia me dizendo que, ao contrário do sucesso de "Krig-Ha Bandolo" (72), com "Ouro de Tolo" e principalmente "Gita" (74) - que vendeu algo em torno de oitocentas mil cópias, puxado pela faixa-título -, "Novo Aeon" não havia ultrapassado as quarenta e poucas mil. Mas se o álbum frustrou as expectativas da gravadora, ao mesmo tempo tornou-se uma espécie de querido filho bastardo para Raul.

Realmente, este é um disco filho da puta de bom. Se Raulzito sempre foi, antes de tudo, um homem de textos, eles nunca estiveram tão afiados, sarcásticos e intensos como em "Novo Aeon". O disco é aberto com "Tente Outra Vez", balada que exorta os perdedores e desesperados a voltar à luta: "Tente/Levante sua mão sedenta e recomece a andar/Não pense que a cabeça aguenta você parar."


Entre o dramático e o patético, ela nos conduz a uma obra-prima da parceria de Raul com o letrista Paulo Coelho - o "Rock Do Diabo". Temido e odiado no senso comum, o velho demo é visto aqui não só como um integrante da mesma gangue ("O diabo usa capote/É rock, é toque, é fuck..."), mas como alguém que pode sintetizar a complexidade da psicanálise em uma simples ação ("Enquanto Freud explica as coisas/O diabo fica dando os toques"). Cantando que "O diabo é o pai do rock...", Raul revela uma intimidade com o assunto que remete ao bluesman Robert Johnson - que em 1936 afirmava "andar lado a lado com satã" em "Me And The Devil Blues".

Enquanto o disco rola, surgem os temas mais imprevisíveis. "Tu És o MDC da Minha Vida" traz uma melodia que costura Orlando Dias e Odair José, enquanto a letra - outra parceria com Paulo Coelho - vai levando a situações hilárias através de seus versos impossíveis: "Eu me lembro/Do dia em que você entrou num bode/Quebrou minha vitrola e minha coleção de Pink Floyd." Quem senão Raulzito ousaria tal rima?

Em outras duas canções, ele flagra os impasses e as contradições que se abateram sobre sua geração no início dos anos 70. No rock'n'roll de "A Verdade Sobre A Nostalgia" declara que "Mamãe já ouve Beatles/Papai já deslumbrou/Com meu cabelo grande eu fiquei contra o que eu já sou". Já "É Fim de Mês" traz em ritmo de baião uma abordagem semelhante (com uma alusão a Os Panteras, o primeiro grupo de rock de Raul em Salvador): "Já fui pantera, já fui hippie, beatnik/Tinha o símbolo da paz dependurado no pescoço/Porque nego disse a mim que era o caminho da salvação."

Mas um dos momentos mais emocionantes do álbum está na canção "Para Nóia", em que a criação católica de Raul desaba com toda sua avalanche de culpas, temor a Deus e vergonha da masturbação ("Minha mãe me disse há tempos atrás/Deus vê sempre tudo que Ôcê faz/Mas eu não via Deus/Achava assombração... Vacilava a ficar nu lá no chuveiro, com vergonha/De saber que tinha alguém ali comigo/Vendo fazer tudo que se faz dentro de um banheiro...").

Um disco inquieto, apesar de maduro. As vezes cínico, mas sempre perturbador. "Novo Aeon" contém toda a grandiosidade estética e poética de Raul. Um artista que, em vida, fazia questão de polemizar e desprezar o insosso "novo rock brasileiro" e por ele era ignorado. Agora, quase três anos após sua morte, alguns dos "artistas" que o "homenageiam" mal conhecem o trabalho dele, mas parecem "topar tudo" por dinheiro. Não se deixe enganar e vá ao original.


Marcelo Nova (Revista Bizz edição 80, Março de 1992)



Tracklist:


01 - Tente Outra Vez 
02 - Rock do Diabo 
03 - A Maçã 
04 - Eu Sou Egoísta 
05 - Caminhos 
06 - Tu És O MDC da Minha Vida 
07 - A Verdade Sobre A Nostalgia 
08 - Paranoia 
09 - Peixuxa (O Amiguinho dos Peixes) 
10 - É Fim de Mês
11 - Sunseed 
12 - Caminhos II 
13 - Novo Aeon




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Comentários

  1. Um puta disco esse do Raulzito, ele tinha trabalhado todo durante o envolvimento dele e de Paulo Coelho com o misticismo, até mesmo o membro de uma entidade da qual eles faziam parte, o Marcelo Motta, ajudou Raul nas letras do disco. E também na época em que ele estava na lua-de-mel com Gloria Vaquer, sua segunda esposa e que compôs com ele "Sunseed" na qual ela usa o pseudônimo de Space Glow e canta junto.
    Um belíssimo disco que hoje em dia tá tendo o reconhecimento tão esperado pelo público.

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