Disco da Semana; 'Zooropa', U2 (1993)


Disco da Semana; 'Zooropa', U2 (1993)


Pode um simples disco Pop prever o futuro? Será que um mero compositor de canções radiofônicas tem nível intelectual para, em pouco mais de 40 minutos, discorrer sobre temas que grandes escritores como William Gibson, Anthony Burgess e Charles Bukowski passaram suas vidas versando em dezenas de livros e textos? Isso sim é que é ambição! Isso sim podemos chamar de megalomania!
O ano é 1992 e o U2 está no topo do seu jogo. A turnê ZOO TV estava decolando, lançando um inédito conceito transgressor na relação ‘arte/música’, integrando a tecnologia de ponta da época ao showbizz. Até então, telões eram meros rebatedores de imagem, ampliando o tamanho daqueles homenzinhos na multidão, para que o pobre coitado lá de trás pudesse pelo menos entender o que se passava no palco. Mas a banda e, especialmente, Bono queriam mais. Queriam transformar a experiência toda. E o momento era perfeito. 
E esse monstrengo começou pequeno e cauteloso em espaços menores para testar todo o processo, que nem eles mesmos sabiam se iria dar certo. Acredite: o primeiro show da turnê em Lakeland, na Flórida, foi ‘somente’ para 15 mil pessoas! Para Edge, “a Zoo TV não era uma apresentação, era um estado de alma”. A banda então foi para a Europa tocar em pequenos ginásios e voltou para a América para levar seu monstro aos estádios. Com o subtítulo de ‘Outside Broadcast’, a turnê se revigorou e ganhou novos contornos fantásticos, os elevando a um patamar jamais visto.
Porém, quando a banda terminou essa parte da turnê e resolveu voltar para a Europa levando um show já encorpado e definido aos estádios de lá, os faniquitos de Bono começaram a tilintar. “Nós estávamos indo para o nosso segundo ano na estrada. Dai surgiu a ideia, ‘Nós vamos ter algum tempo de folga. Ainda temos algumas ideias do último álbum, vamos fazer um EP, talvez umas quatro novas músicas para dar um tempero a mais para próxima fase da turnê. Um item de colecionador. Vai ser legal’”, comenta Edge. “Então nós fomos para o Factory Studio, em Dublin, durante algumas semanas em fevereiro de 1993. Mas, na metade do processo de produção desse material, Bono, um eterno otimista, disse: ‘Se nós vamos ter todo o trabalho de fazer um EP, vamos nos esforçar e ver se conseguimos fazer um álbum completo’. Eu estava lutando na época para dar alguma forma a musica, e não fiquei muito entusiasmado com a ideia no começo. Mas dai vi que era um grande desafio, um pouco impressionante. Conseguiria o U2 fazer um álbum em doze semanas, que era todo o tempo que nós tínhamos, ou nós nos tornamos tão mimados pelos orçamentos sem fim das gravações que nós precisamos de um ano para fazer um álbum?”
Foi nessa imersão em um universo completamente diferente do já haviam experimentado que o ‘estado de espírito’ da ZOO TV os contaminou. Os contaminou não só para desafiarem-se logisticamente, mas também, musicalmente. Porque não tentarem ir onde nunca estiveram? “Nós tínhamos (os produtores) (Brian) Eno (ex-Roxy Music) e Flood (Depeche Mode e Nine Inch Nails), o que já era uma grande ajuda, mas por causa do problema do tempo, nós tínhamos que nos dedicar muito. Não havia nenhuma oportunidade para bagunças ou mesmo segundas opiniões, nós tínhamos que escrever, produzir, gravar e só”, comentou Edge.

E dessa ‘pressa’ nasceu o clima errático de “Zooropa”. O conceito era falar sobre o futuro através do presente, como um álbum conceitual. Imaginar um homem tão maravilhado com esse lugar que estava disposto a renegar tudo o que acreditava. Sobre esse período, Bono comentou; “Foi muito intenso, uma época de muita criatividade. Nós estávamos perdidos no nosso trabalho, na nossa arte e na nossa vida, tudo parecia ter se misturado em apenas uma coisa. As calças de plástico estavam ficando cada vez mais difícil de serem tiradas após os shows”.
Cada faixa não foi realmente pensada para um disco conceitual, porém, tudo acabou se encaixando de forma quase sobrenatural. “Era a nossa chance de criar um mundo ao invés de apenas música, e um mundo lindo”, completa.
Já na abertura, a faixa-título (que é dividida em duas partes: ‘Babel’ é a introdução hipnótica enquanto ‘Zooropa’ começa no mantra da guitarra de Edge, e nasceu em uma passagem de som durante a turnê), já tínhamos uma surpresa. O U2, famoso pelos seus refrões para estádios, começava seu rebento sem um deles. “É o nosso novo manifesto”, disse Bono. A letra: “Eu não tenho nenhuma bússola, eu não tenho mapas, e eu não tenho nenhuma razão para voltar’. “Brian Eno estava na sua ‘área’. O estúdio se tornou um instrumento, um parque de diversões..."
E é assim, questionando a sua fé, que “Zooropa” começa. E o mais estranho nisso tudo, é que mesmo os fãs mais quadrados compraram a ideia. “Deslizaram sob a superfície das coisas”, como a banda gostava de mencionar. Só dessa vez, a superfície escondia sim muito conteúdo mergulhado em estranheza. Não acredita? Pegue “Babyface”, a segunda faixa. Em uma melodia eletronicamente doce, Bono versa sobre sexo com uma imagem na televisão. Famosa pela religiosidade, em duas canções a banda consegue ir mais longe do que antes, negando a fama religiosa e exaltando o sexo via satélite. Detalhe: antes das Webcams dominarem o mundo.
“Numb”, escolhida pela banda para ser o primeiro single do álbum, é a antítese do que foi escolhida para ser: não tem refrão, paixão, explosão… Nada! Cantada pelo guitarrista The Edge, a faixa retrata um homem sem vida e sem vontades, totalmente absorto na programação da televisão vinte quatro horas por dia. O sensacional vídeo dirigido por Kevin Godley costurou o conceito audiovisual da banda ao extremo, mostrando Edge olhando nos nossos olhos como um robô saído de “2001 – Uma Odisseia no Espaço” enquanto a vida acontece a sua volta. 
Depois dessa tríade de abertura, já poderíamos esperar qualquer coisa e “Lemon” só reforça a estranheza. Totalmente cantado em falsete por Bono, a canção versa sobre a memória mais antiga de sua mãe, Iris, morta quando ainda era criança. Dançante e cíclica, é quase uma homenagem a grande tecnologia que, em 93, prenunciava mudar o mundo; A reciclagem.
“Stay” é a única coisa “quase” U2 tradicional no álbum. Inspirada pelo filme alemão “Tão Longe, Tão Perto”, de Wim Wenders, continuação de “Asas do Desejo” e mais conhecido por aqui pela refilmagem norte-americana “Cidade dos Anjos”, ela é quase que como um pedaço de céu, porém, cinza. Melancólico, Bono lamenta sobre a distância das coisas. Sobre a impessoalidade que a tecnologia impõe, ao mesmo tempo em que versa sobre anjos caídos, tema central dos filmes. Uma obra prima reverenciada até pela própria banda. “É a principal faixa do álbum”, segundo Edge.
E esse é o lado A. E pensar que era o lado mais fácil do disco. O lado B consegue ser ainda mais difícil que o anterior, porém, com uma angústia quase Joy Division. Pós-Punk e industrial.



Já na abertura com a bluesy “Daddy’s Gonna Pay For Your Crashed Car”, sob uma introdução sampleada das fanfarras preferidas de Lênin e uma bateria marcial, perfeita para um desfile de soldados marchando, Bono versa sobre a imaturidade de um viciado como um demônio convencendo alguém a pular de um precipício. O mesmo vale para a canção seguinte, “Some Days Are Better Than Others”, com uma linha de baixo matadora de Adam Clayton e uma guitarra que mais parece um zunido do que aquele velho instrumento de seis cordas. Edge está totalmente a vontade com um novo universo nas suas partes. Ele não está ali como um Guitar Hero. Quando aparece, são para intervenções, barulhos dissonantes. A letra é ainda mais cínica: “Alguns dias você se sente um pouco bebê procurando por Jesus e sua mãe. Alguns dias são melhores do que outros”. Na melhor linha Lou Reed.
Durante sete faixas, o narrador desconfia do mundo e o rejeita. Faz amor e fica entorpecido pela televisão. Alcança o cume de sua arrogância e cai de joelhos do seu pedestal e, como um anjo caído, brinca com a fossa dos outros. Chegou então a hora do arrependimento.
Na sua parte final, a temática é autocontida. O personagem que afirmava e questionava agora se mostra arrependido e quer voltar para casa, em uma jornada de autopunição. A tríade “The First Time”, “Dirty Day” e “The Wanderer” fecham esse disco com chave de ouro. “The First Time” é uma música muito especial”, explica Bono. “Me parece muito certo que bem no meio de todo esse caos e luzes ofuscantes haveria um momento muito simples, poético". completa
Já “Dirty Day” é uma música sobre pai e filho. “’It’s a dirty day’ (É um dia sujo), era uma expressão que o meu pai costumava usar e tem muito dele nessa música, mas também foi influenciada por Charles Bukowski, o grande escritor norte-americano e bebedor”, comenta Bono. 
Já sobre “The Wanderer”, talvez uma das melhores coisas que o U2 fez em todos os tempos, ele comenta; “Eu tive muitas figuras paternas na minha vida. Que lista isso daria! Mas em algum lugar no topo dessa lista tem que estar Johnny Cash, para quem nós escrevemos uma música e o persuadimos a vir e cantá-la conosco, para fechar o álbum.
O disco foi extremamente bem recebido pela crítica, apesar das vendas não terem sido tão expressivas para os padrões da banda até então. Muitos chegaram a elegê-lo como um dos melhores do ano e a banda ganhou um Grammy como “Melhor disco alternativo”, o que parece surreal. Praticamente todo o material do disco foi descartado após o término da “ZOO TV”; “Stay” é a única que foi mais regularmente tocada nas turnês subsequentes. Infelizmente, a banda não valoriza o disco como deveria; “Eu nunca pensei no Zooropa como algo mais do que um intervalo”, comentou Edge. “Mas um bom intervalo. De longe, o nosso mais interessante.”.
Bono complementa; “Na época eu imaginava Zooropa como um trabalho de gênios. Eu realmente achava que a nossa disciplina pop estava se encaixando na nossa experimentação e esse era o nosso Sgt. Peppers. Eu estava um pouco enganado em relação a isso. A verdade é que a nossa disciplina pop estava nos deixando para baixo. Nós não criamos hits. Nós praticamente não entregamos as músicas. O que seria de Sgt. Peppers sem as músicas pop?”.
A banda ainda manteve o pé na experimentação por mais alguns anos; O projeto “Passengers : Original Soundtracks One”, lançado em 1995, e o controverso álbum “Pop”, de 1997, que junto da sua turnê “Popmart”, quase quebrou a banda.
O que sobra, e o que deve ser sempre lembrado, é esse grande disco, de uma banda que tinha tudo para ser muito mais que produtores de hits radiofônicos. Se existe arte no trabalho do U2, ele foi todo comprimido nesse pequeno, esquisito e torto disco de dez faixas lançado há vinte anos. Uma pena que será esquecido…

(Márcio Guariba - UmTemperamentalViveAqui!)

Curiosidade; Na capa do álbum, que emula as estrelas da então recente união européia com um desenho infantil de um cosmonauta russo, há várias imagens de fundo e textos escondidos, onde podemos ler três frases; 'Velvet Dress', 'Wake Up Dead Man' e 'Hold Me, Thrill Me, Kiss Me, Kill Me', todas faixas lançadas posteriormente ao disco.

Tracklist;

01. Zooropa
02. Babyface
03. Numb
04. Lemon
05. Stay (Faraway, So Close!)
06. Daddy's Gonna Pay For Your Crashed Car
07. Some Days Are Better Than Others
08. The First Time
09. Dirty Day
10. The Wanderer






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